23 dezembro 2009

Trivium...

Nas universidades medievais, o estudante começavam seus estudos, obrigatoriamente, pelo Trivium - o ensino das três primeiras artes liberais, a Gramática, a Dialética e a Retórica. Se a Gramática era o estudo dos mecanismos da língua, a Dialética - que, à época, era sinônimo de Lógica - era, por sua vez, o estudo dos mecanismos do pensamento, da análise e da mensagem; a Retórica, que completava esse primeiro ciclo de estudos, era a arte de usar a linguagem para persuadir e instruir. Somente depois de dominadas essas três artes liberais é que o aluno estava apto a estudar o Quadrivium, que abrangia o ensino da Aritmética, da Música, da Geometria e da Astronomia - todas elas artes liberais relacionadas com números e medidas. Concluído o Quadrivium, e apenas depois disso, os alunos tornavam-se aptos ao estudo da Filosofia e da Teologia.

Desenvolvido entre os séculos XII e XIII, o que hoje é conhecida como educação clássica parece ser uma forma lógica e natural de ensino que se perdeu ao longo das mudanças todas da História. Primeiro, aprendia-se a lidar com o pensamento, sua organização em busca da verdade, bem como com sua manifestação através da linguagem, tanto em seus mecanismos internos quanto em seu uso prático na sustentação de um debate. A linguagem é, afinal, o conhecimento básico que se necessita para adentrar em qualquer outra área do conhecimento, mesmo no mundo dos números e medidas que, à época, unia áreas que hoje são quase opostas, como matemática e música. E os medievais acreditavam que apenas dominando a lógica lingüística e a lógica matemática é que podia o pupilo arvorar-se a metidar sobre a sabedoria do mundo e as razões do além-mundo.

É tolice acreditar que a História sempre evolui, que o homem caminha inexoravelmente para o bem e a verdade. A evolução das sociedades mostra, claramente, ser feita de avanços e revezes, e que a impressão de progresso muitas vezes é mais relacionada aos avanços tecnológicos que às conquistas do saber e do sentir. Olhando a educação do Trivium e do Quadrivium, há que se meditar se a Idade Moderna não nos fez abandonar o que era mais coerente e produtivo em termos de educação.

Não se discute aqui um retorno aos métodos pedagógicos de então - há todo um conhecimento construído pelos educadores do século passado que não pode ser desprezado, ao qual os mestres medievais não tiveram acesso. Mas é inegável que, nas escolas de hoje, os alunos são expostos a um sem-número de conhecimentos desde muito cedo - há creches oferecendo aulas de língua estrangeira e escolas de Ensino Fundamental trabalhando Sociologia com as crianças - sem que, para tal, eles tenham qualquer preparação. O problema torna-se ainda mais claro em um país como o Brasil, onde o analfabetismo funcional em grande escala é mascarado pelos números governamentais que apontam a diminuição do analfabetismo baseada apenas no número de crianças matriculadas. Não é mais um mito escolar, e sim um fato: há muitos alunos que concluem o Ensino Médio sem saber usar a língua materna a seu favor, sem saber argumentar ou sustentar uma discussão ou mesmo ler um texto escrito e discernir sobre seu conteúdo. Soubessem o Trivium bem sabido, não seria distinta a realidade das escolas brasileiras?

A reflexão ganha ainda maior força quando se pensa no Ensino Superior. No Brasil, o vestibular tornou-se uma indústria e o diploma universitário apenas um passaporte necessário para a vida profissional - se o aluno ganhará algum conhecimento de fato após os anos de estudo na universidade, isso é outra história... Se pensarmos que os universitários chegam aos seus cursos sem saber se comunicar em todas as instâncias, que esperar do produto final? Formam-se matemáticos que não aprenderam a se expressar bem na língua materna, músicos que não dominam o mundo dos números, abre-se as portas para adolescentes nas faculdades de Filosofia que sequer ouviram falar de Lógica ou de Retórica. Mesmo os alunos de Letras não são testados, antes da matrícula, quanto à sua capacidade de uso da linguagem. Um dia eles aprendem passou a ser o lema - ou a última esperança - das universidades brasileiras.
Os que pensam ser tolice imaginar tal retorno à graduação de conhecimentos proposta pelos medievais, que tente debater um assunto qualquer com os jovens de hoje em dia. O que é argumento sobre suas idéias, aos ouvidos deles, torna-se ataque pessoal; silogismos e non sequitur são, para eles, imperceptíveis e, não raro, é difícil até mesmo tentar construir uma seqüência lógica de raciocínio a partir de seus discursos. A língua serve-lhes apenas para expressar os pensamentos mais corriqueiros, o que faz qualquer um pensar sobre o escoadouro por onde estará escapando todo aquele conhecimento que a escola lança nesses alunos, em enxurradas.
Não será um delírio muito grande imaginar que a fonte de alguns problemas contemporâneos possa também residir nessas escolhas equivocadas de séculos de educação que levaram à configuração atual das escolas e seus currículos. A violência não é sempre o recurso dos que não conseguem se defender com as palavras, ou dos que não têm a razão ao seu lado? O sentimento de superioridade não é uma compensação de quem sente não ter algo e supervaloriza o pouco que tem como arma de dominação ou de ataque? Falta-lhes o Trivium, um saber que a todos iguala e defende das tiranias, uma ferramenta de democracia bem mais próxima da verdade que cem matrículas no sistema de ensino ou mil programas assistencialistas de qualquer governo.
(Robertson Frizero Barros)

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