19 junho 2009

A mãe de Chapeuzinho Vermelho


Moramos numa casa perto da floresta (onde não cabe mais ninguém, nem um lobo), caiada de branco com vasos de gerânio na janela, eu, minha mãe e o gato. Mamãe costurou uma capa vermelha com capuz pra mim e eu vivia vestida desse jeito, mas agora só uso de vez em quando porque o capuz esquenta minhas orelhas, aí elas ficam vermelhas e horríveis.
Não tenho outros parentes, a não ser minha avó, que mora numa casinha no meio da floresta e não consegue mais sair. Vive deitada. Ou está dormindo ou pensando no tempo em que era moça e corria pelos campos e voltava pra casa toda esfolada, ela disse. Não sei onde eram os campos. De vez em quando mamãe vai à casa da vovó, levar coisas gostosas, que ela chama de guloseimas. Do lado de fora de nossa casa, no jardim ao redor dela, as borboletas voam entre as flores e os passarinhos cantam nos arbustos e o cheiro de bolo que mamãe faz sai pela chaminé que solta rolos de fumaça no céu azul.
Uma vez perguntei à mamãe onde as borboletas e os passarinhos faziam cocô.
- No ar. Como todo mundo - respondeu, e mandou que eu parasse de perguntar bobagem.
Naquela tarde, passei muito tempo com os olhos no ar, mas não vi nada, então desisti e fui atrás de uma joaninha.
Corria tudo bem na nossa casa até que, de um dia para o outro, não sei o que aconteceu, que mamãe ficou diferente. Não fala direito comigo, não sai de casa nem para ir ao jardim e nem quer saber do gato que ela vivia pegando no colo, fazendo carinho nele, chamando-o Pulguinho. Ficava até tarde na cama, na mesma posição, de olhos abertos. Um dia que ela ainda não tinha se levantado, tentei falar com vovó no telefone, contar como estava sua filha, mas vovó não escutou nada do que eu disse. Acho que estava sonhando, porque falou em cavalos soltos pelas campinas. Com o gato tentei conversar várias vezes, mas ele também não quis ouvir, seus pelos se arrepiavam e logo ele escapulia saltando do meu colo para o chão e dando voltas pela cozinha, miando. Como eu não tinha ninguém mais com quem conversar, perguntei à mamãe o que estava acontecendo com ela:
- Nada, nada...
- É por causa do lobo mau?
- Não me fale desse animal traiçoeiro!
E pediu que eu não fizesse mais perguntas porque ela estava atazanada. Quis perguntar o que era aquela palavra, mas não podia falar mais. E mamãe ficou dando voltas na cozinha, ela e o gato. (Parecia até que brincavam de roda.) Olhava para uma panela, depois para outra, abria o forno, consultava o livro de receitas, espiava o tempo lá fora, depois largava tudo pra lá e ia se deitar, com os braços cruzados sobre o peito e os olhos passeando no teto. Aí eu voltava a perguntar:
- O que foi, mãe?
- Nada, nada...
Um dia de manhã em que tudo estava mudo, até o papagaio que morava lá perto não falava, mamãe acordou mais diferente ainda. Diferente do que já estava. Era uma diferença atrás da outra. Fazia tudo apressado, correndo de um lado para o outro. Até a comida nem sei como conseguiu fazer tão depressa; depois do almoço corria tirando a mesa, deixando as coisas caírem no chão, lavou a louça fazendo barulho, quebrando um pires, quando, de repente, arrancou o avental pela cabeça e, atirando-o sobre a pia, exclamou:
- Que loucura a minha vida, que loucura!
- O que aconteceu, mãe? - Corri atrás dela perguntando.
- Para de correr à minha volta!
- Por que você está correndo? - perguntei, puxando-a pela saia.
- Preciso evitar que a história se repita!
- Que história?
- Ora, de comerem sua avó!
E agora não posso explicar mais nada, ela disse, e enfiou o capuz de veludo vermelho na cabeça, foi se espiar no espelho do banheiro e, depois de espalhar muito batom na boca e nas bochechas, atravessou a cozinha quase escorregando, alcançou a cesta com guloseimas que havia preparado, pendurou-a no braço, abriu a porta de casa e saiu em disparada pela floresta.
- Pela estrada afora eu vou bem sozinha...
- Sshh... - Fiz para o papagaio que começava a cantar, e ele ficou quieto.
O gato miava à minha volta.
- Para, Pulgo! - Eu disse e corri atrás de mamãe, gritando:
- Você não vai levar flores para a vovozinha?
- Não há tempo... não há... - respondeu ela na corrida.
- Há muitos perigos na floresta, o caminho é deserto e o lobo mau passeia aqui por perto!
- Para de falar nesse animal! - gritou, gesticulando com um dos braços, a capa flutuando sobre os ombros, se desviando das borboletas, tropeçando e quase caindo; e entrou na mata escura.
Voltei a gritar por ela que, aos poucos, tinha se transformado numa mancha em movimento.
- Cuidado! Ele é enorme, tem o focinho grande, os olhos acesos e os dentes agudos...
- Eu sei, eu sei... Mas você insiste em falar nesse animal...
Continuava a ouvir seu grito, enquanto ela saltava os coelhos que apareciam pelo caminho; desaparecia atrás das árvores, pisava nas flores, deixando o rastro da capa vermelha ondulando; e o bolo, as rosquinhas, e o pote de geleia caíam pela estrada afora...
Então gritei pela última vez:
- O caçador! Ele vai fazer a pontaria e te dar um tiro certeiro!
- É com ele que eu vou me encontraaaarrr! - Mal deu para escutar o que ela disse...
Lívia Garcia-Roza

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